Ela continuou sentada, mesmo após o terceiro toque do telefone, no quarto toque pousou o livro no colo e olhou pela janela, algumas nuvens brancas contrastavam com o céu azul escuro. O sol se punha no horizonte começando a pitar de laranja o azul, como uma tinta escorrendo por sobre a outra.
Quinto toque. Tomou mais um gole de café, colocou a xícara delicadamente sobre o pires, o barulhinho da porcelana contra porcelana a fez sorrir. Lembranças.
Estendeu a mão e tirou fone do gancho. Respirou fundo.
- Alô. - A voz saiu rouca pela falta de uso.
- O sol está se pondo.
Um sorriso delicado brincou com o rosto dela. A voz do outro lado estava rouca também, mas por anos de cigarro.
- Laranja no azul.
- Laranja no azul. - houve uma pequena pausa, ela o ouviu soprar o ar, provavelmente soltando a fumaça do cigarro. - Eu sei como você vai morrer.
Mórbido. Ela pensou. Mas ele era assim mesmo, sempre falando de coisas que a maioria das pessoas fogem de falar, sempre cutucando feridas e causando dores. Ele absorvia 'sentires'. Ele precisava provocar essas coisas nas pessoas.
Ela pegou a xícara e tomou mais um gole de café. Calma. Dessa vez manteve a xícara na mão, balançou fazendo pequenos círculos, alguns grãos de café balançaram no fundo. Ele sabe.
- Como será?
- Suicídio.
Silêncio. A xícara voltou a mesa, bateu na borda do pires e tombou, o restinho do café turco molhou o livro, mas ela não se importou. Um riso nervoso saiu dela.
- E por que pensa isso?
Conseguiu levantar os olhos da mesa e olhar pela janela, o céu agora estava mais laranja que azul, as nuvens pareciam querer fugir do laranja em direção ao azul.
- Sabe, intenso e passageiro. Seus sentimentos são assim. Intensos e passageiros. E em algum momento você terá um sentimento tão... Diferente, e bom, e que você irá querer conservá-lo.
- Então eu me mato pra conservar um sentimento?
- Sim. A efemeridade das coisas te assusta, você vai em busca de algo definitivo. Há algo mais definitivo que a morte?
Não há.
Perguntou-se porque tinha atendido ao telefone. Ele podia ter continuado a soar enquanto ela terminava calmamente seu livro e seu café. E depois seguia com seus planos.
- Não há. - Respondeu quando achou que o silencio era pesado e acusador de mais. - Mas... Porque pensa assim?
Mais uma vez ouviu ele soprar a fumaça do cigarro. Esperou por um riso nervoso, não veio. Ele era controlado demais.
- Talvez nós sejamos muito mais um do que dois. Talvez o que eu sinta reflita em você, ou o que você sente reflita em mim e no fim... Acabamos por ser um. Sinto também a necessidade de algo definitivo. Preciso realmente disso. Definição.
Ele sabia. Ele sentia. Ele refletia.
Silencio. Ela com a mão crispada segurava o fone como se a qualquer momento alguma coisa o arrancaria dela. Pensou que tinha mesmo que terminar o livro, agora manchado pelo café que no susto, ela tinha derramado. Pensou que tinha de limpar a mesa e deixar tudo em ordem, pensou que poderia muito bem chamá-lo, afinal... Eles eram um.
- Tenho que ir. Terminar o livro que estou lendo.
- Termine amanhã. - Pela primeira vez ouviu a voz dele vacilar. - Por favor, termine amanhã.
Ela continuou imóvel. Ele sabia. Sem nenhum anuncio nem movimento, uma lágrima desceu preguiçosa pela bochecha e parou no canto da boca, o queixo estremeceu um pouco e por fim ela suspirou, suspiro doloroso, como se o peito estivesse se rasgando, uma ferida aberta que queimava ainda mais por causa do sal das suas lagrimas.
- Preciso mesmo terminá-lo hoje.
Ela se espantou com a calma na voz. O céu agora estava se tornando do laranja para o lilás, azul já não existia. Laranja e lilás.
- Por que?
- Por que hoje está tudo vazio, e se você reflete o que sinto ou sente o que eu reflito, você deve saber que vazio é bom, é calmo, é...
- Vazio.
- Vazio.
Desligou o telefone, assim mesmo, sem aviso, sem adeus. Guardou consigo a voz dele tranqüila e astuta.
Limpou a mesa, levou o livro até o banheiro, onde com o secador secou as páginas manchadas com o café, terminou as três páginas que faltavam. No CD player sua banda favorita começou os primeiros acordes da sua musica favorita.
Ele sabia. Como? Ela não soube. E nunca saberia, por que a partir dali, só houve...
Vazio...